segunda-feira, 23 de junho de 2008

Iniciativa privada e empresa e a Doutrina Social Católica

Recentemente um aluno perguntou qual a visão da Igreja sobre o setor privado. Fiquei surpreso, afinal introdução a teologia é uma disciplina obrigatória, mas a memória nesta idade, não raro nos trai. Como não sou teologo, apenas um economista, ainda que católico, indiquei o trecho abaixo, do Compendio da Doutrina Social, que considero a melhor introdução a um tema delicado e controverso

"III. INICIATIVA PRIVADA E EMPRESA

336 A doutrina social da Igreja considera a liberdade da pessoa em campo econômico um valor fundamental e um direito inalienável a ser promovido e tutelado: «Cada um tem o direito de iniciativa econômica, cada um usará legitimamente de seus talentos para contribuir para uma abundância que seja de proveito para todos e para colher os justos frutos de seus esforços»[702]. Tal ensinamento põe de guarda contra as conseqüências negativas que derivariam da mortificação ou negação do direito de iniciativa econômica: «A experiência demonstra-nos que a negação deste direito ou a sua limitação, em nome de uma pretensa “igualdade” de todos na sociedade, é algo que reduz, se é que não chega mesmo a destruir de fato, o espírito de iniciativa, isto é, a subjetividade criadora do cidadão»[703]. Nesta perspectiva, a iniciativa livre e responsável em campo econômico pode ser definida como um ato que revela a humanidade do homem enquanto sujeito criativo e relacional. Tal iniciativa deve gozar, portanto, de um espaço amplo. O Estado tem a obrigação moral de pôr vínculos estreitos somente em vista das incompatibilidades entre a busca do bem comum e o tipo de atividade econômica iniciada ou as suas modalidades de realização[704].


337 A dimensão criativa é um elemento essencial do agir humano, também em campo empresarial, e se manifesta especialmente na aptidão a projetar e a inovar: «Organizar um tal esforço produtivo, planear a sua duração no tempo, procurar que corresponda positivamente às necessidades que deve satisfazer, assumindo os riscos necessários: também esta é uma fonte de riqueza na sociedade atual. Assim aparece cada vez mais evidente e determinante o papel do trabalho humano disciplinado e criativo e — enquanto parte essencial desse trabalho — das capacidades de iniciativa e de empreendimento»[705]. Na base de tal ensinamento deve ser individuada a convicção de que «a riqueza principal do homem é, em conjunto com a terra, o próprio homem. É a sua inteligência que o leva a descobrir as potencialidades produtivas da terra e as múltiplas modalidades através das quais podem ser satisfeitas as necessidades humanas»[706].


a) A empresa e seus fins

338 A empresa deve caracterizar-se pela capacidade de servir o bem comum da sociedade mediante a produção de bens e serviços úteis. Procurando produzir bens e serviços em uma lógica de eficiência e de satisfação dos interesses dos diversos sujeitos implicados, ela cria riqueza para toda a sociedade: não só para os proprietários, mas também para os outros sujeitos interessados na sua atividade. Além de tal função tipicamente econômica, a empresa cumpre também uma função social, criando oportunidades de encontro, de colaboração, de valorização das capacidades das pessoas envolvidas. Na empresa, portanto, a dimensão econômica é condição para que se possam alcançar objetivos não apenas econômicos, mas também sociais e morais, a perseguir conjuntamente.

O objetivo da empresa deve ser realizado em termos e com critérios econômicos, mas não devem ser descurados os autênticos valores que permitem o desenvolvimento concreto da pessoa e da sociedade. Nesta visão personalista e comunitária, «A empresa não pode ser considerada apenas como uma “sociedade de capitais”; é simultaneamente uma “sociedade de pessoas”, da qual fazem parte, de modo diverso e com específicas responsabilidades, quer aqueles que fornecem o capital necessário para a sua atividade, quer aqueles que colaboram com o seu trabalho»[707].


339 Os componentes da empresa devem ser conscientes de que a comunidade na qual atuam representa um bem para todos e não uma estrutura que permite satisfazer exclusivamente os interesses pessoais de alguns. Somente tal consciência permite chegar à construção de uma economia verdadeiramente ao serviço do homem e de elaborar um projeto de real cooperação entre as partes sociais.

Um exemplo muito importante e significativo na direção indicada provém da atividade das empresas cooperativas, das empresas artesanais e das agrícolas de dimensões familiares. A doutrina social tem sublinhado o valor do contributo que elas oferecem para a valorização do trabalho, para o crescimento do sentido de responsabilidade pessoal e social, para a vida democrática, para os valores humanos úteis ao progresso do mercado e da sociedade[708].

340 A doutrina social reconhece a justa função do lucro, como primeiro indicador do bom andamento da empresa: «quando esta dá lucro, isso significa que os fatores produtivos foram adequadamente usados e as correlativas necessidades humanas devidamente satisfeitas»[709]. Isto não ofusca a consciência do fato de que nem sempre o lucro indica que a empresa está servindo adequadamente a sociedade[710]. É possível, por exemplo, «que a contabilidade esteja em ordem e simultaneamente os homens, que constituem o patrimônio mais precioso da empresa, sejam humilhados e ofendidos na sua dignidade»[711]. É o que acontece quando a empresa está inserida em sistemas sócio-culturais caracterizados pela exploração das pessoas, inclinados a fugir às obrigações de justiça social e a violar os direitos dos trabalhadores.

É indispensável que, no interior da empresa, a legítima busca do lucro se harmonize com a irrenunciável tutela da dignidade das pessoas que, a vário título, atuam na mesma empresa. As duas exigências não estão absolutamente em contraste uma com a outra, pois que, de um lado, não seria realista pensar em garantir o futuro da empresa sem a produção de bens e serviços e sem conseguir lucros que sejam fruto da atividade econômica realizada; por outro lado, consentindo crescer à pessoa que trabalha, se favorecem uma maior produtividade e eficácia do trabalho mesmo. A empresa deve ser uma comunidade solidária[712] não fechada nos interesses corporativos, tender a uma «ecologia social»[713] do trabalho, e contribuir para o bem comum mediante a salvaguarda do meio ambiente natural.


341 Se na atividade econômica e financeira a busca de um lucro eqüitativo é aceitável, o recurso à usura é moralmente condenado: «Todo aquele que em seus negócios se der a práticas usurárias e mercantis que provocam a fome e a morte de seus irmãos (homens) comete indiretamente um homicídio, que lhe é imputável»[714]. Tal condenação estende-se também às relações econômicas internacionais, especialmente pelo que respeita a situação dos países menos avançados, aos quais não podem ser aplicados «sistemas financeiros abusivos e mesmo usurários»[715]. O Magistério mais recente tem reservado palavras fortes e claras para uma prática ainda hoje dramaticamente estendida: «não praticar a usura, chaga que ainda nos nossos dias é uma realidade vil, capaz de aniquilar a vida de muitas pessoas»[716].


342. A empresa se move hoje no quadro de cenários econômicos de dimensões mais cada vez amplas, nos quais os Estados nacionais mostram limites na capacidade de governar os processos de mudança por que passam as relações econômico-financeiras internacionais; esta situação induz as empresas a assumir responsabilidades novas e maiores em relação ao passado. Nunca como hoje o seu papel aparece determinante em vista de um desenvolvimento autenticamente solidário e integral da humanidade e é igualmente decisivo, neste sentido, o seu nível de consciência do fato de que o «desenvolvimento ou se torna comum a todas as partes do mundo, ou então sofre um processo de regressão mesmo nas zonas caracterizadas por um constante progresso. Este fenômeno é particularmente indicativo da natureza do desenvolvimento autêntico: ou nele participam todas as nações do mundo, ou não será na verdade desenvolvimento»[717].


b) O papel do empresário e do dirigente de empresa


343 A iniciativa econômica é expressão da inteligência humana e da exigência de responder às necessidades do homem de modo criativo e colaborativo. Na criatividade e na cooperação está inscrita a autêntica concepção da competição empresarial: um cum-petere, ou seja, um buscar junto as soluções mais adequadas para responder do modo mais apropriado às necessidades que passo a passo vêm à tona. O sentido de responsabilidade que brota da livre iniciativa econômica se configura não só como virtude individual indispensável para o crescimento humano do indivíduo, mas também como virtude social necessária ao desenvolvimento de uma comunidade solidária: «Para este processo, concorrem importantes virtudes, tais como a diligência, a laboriosidade, a prudência em assumir riscos razoáveis, a confiança e fidelidade nas relações interpessoais, a coragem na execução de decisões difíceis e dolorosas, mas necessárias para o trabalho comum da empresa, e para enfrentar os eventuais reveses da vida »[718].


344 Os papéis do empresário e do dirigente reveste uma importância central do ponto de vista social, porque se colocam no coração daquela rede de liames técnicos, comerciais, financeiros, culturais, que caracterizam a moderna realidade da empresa. Dado que as decisões empresariais produzem, em razão da crescente complexidade da atividade empresarial, uma multiplicidade de efeitos conjuntos de grande relevância não só econômica, mas também social, o exercício das responsabilidades empresariais e dirigenciais exige, além de um esforço contínuo de atualização específica, uma constante reflexão sobre as motivações morais que devem guiar as opções pessoais de quem esta investido de tais encargos.

Os empresários e os dirigentes não podem levar em conta exclusivamente o objetivo econômico da empresa, os critérios de eficiência econômica, as exigências do cuidado do «capital» como conjunto dos meios de produção: é também um preciso dever deles o concreto respeito da dignidade humana dos trabalhadores que atuam na empresa[719]. Estes últimos constituem «o patrimônio mais precioso da empresa»[720], o fator decisivo da produção[721]. Nas grandes decisões estratégicas e financeiras, de compra ou de venda, de redimensionamento ou fechamento das filiais, na política das fusões, não se pode limitar exclusivamente a critérios de natureza financeira ou comercial.


345 A doutrina social insiste na necessidade de que o empresário e o dirigente se empenhem em estruturar a atividade profissional nas suas empresas de modo a favorecer a família, especialmente as mães de família no cumprimento das suas funções[722]; respondam, à luz de uma visão integral do homem e do desenvolvimento, à demanda de qualidade «das mercadorias a produzir e a consumir, qualidade dos serviços a ser utilizados, qualidade do ambiente e da vida em geral»[723]; invistam, sempre que se apresentarem as condições econômicas e de estabilidade política, nos lugares e nos setores produtivos que oferecem a indivíduos e povos «a ocasião de valorizar o próprio trabalho»[724]."