quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Crise da Grécia não vai contaminar os EUA

Ótimo resumo do debate sobre o impacto da crise grega sobre a economia americana e o papel da política fiscal na superação da crise econômica. Martin Wolf tem razão, ainda não é o momento para o aperto fiscal. Não se deve repetir os erros dos anos 30.


Niall Ferguson não é dado a meias palavras. Por isso, não me surpreendi com sua alegação*, na semana passada, de que os EUA enfrentarão uma crise grega. Mas considerei a ideia um exemplo de histeria.
Da mesma forma que muitos outros países de alta renda, os EUA estão decerto andando por uma corda bamba. Mas os perigos são a frouxidão excessiva em curto prazo e o aperto excessivo em curto prazo. Esse é um dilema do qual Ferguson não parece consciente.
O professor Ferguson afirmou que, de acordo com projeções da Casa Branca, o deficit público federal dos EUA excederá o PIB do país, a partir de 2012; que a previsão é que os EUA jamais voltem a operar com um Orçamento equilibrado; que foi a política monetária, e não os deficit, que salvou a economia; que taxas de juros mais altas estão a caminho; e, além de tudo, que alta dívida fiscal é prejudicial.
Brad DeLong, da Universidade da Califórnia em Berkeley, respondeu afirmando que partes do argumento oferecido por Ferguson estão erradas ou são enganosas: as projeções da Casa Branca são que a dívida federal detida pelo público seja de 71% do PIB em 2012 e de não mais de 77% em 2020; a política monetária não teria sido capaz de produzir nem mesmo a recuperação limitada que estamos vendo, caso não tivesse recebido ajuda; e taxas de juros mais altas podem de fato estar a caminho, mas nada da atual curva de rendimentos sugere que esse seja o caso.
Além disso, não existe necessidade de medidas de equilíbrio do Orçamento em um país cujo PIB nominal cresce ao menos 5% ao ano em tempos normais.

Almoço grátis
O professor Ferguson está tentando apavorar as autoridades norte-americanas para evitar que mantenham ou, ainda melhor, ampliem o estímulo fiscal, se bem que a verdadeira questão seja a sustentabilidade em prazo mais longo. Ele também acusa seus oponentes de acreditar em um "almoço grátis keynesiano". Não é fato. O argumento, em lugar disso, é o de que a produção mais alta agora excede o custo que o serviço da dívida terá amanhã.
O professor Ferguson acredita, em lugar disso, em um almoço grátis conservador. Estamos falando da opinião de que um aperto fiscal agora teria pouco efeito sobre a atividade econômica. Normalmente, quando a política monetária tem margem de manobra e a captação do setor público não sofre restrições, isso seria verdade.
Mas, como apontaram Olivier Blanchard, economista-chefe do FMI (Fundo Monetário Internacional), e seus colegas, em relatório recente, "já que a política monetária, incluindo créditos e relaxamento quantitativo, em larga medida atingiu os seus limites, as autoridades econômicas têm pouca chance a não ser depender da política fiscal".
Os países de alta renda que tiveram os mais elevados saltos em deficit e dívidas foram, como não poderia deixar de ser, Irlanda, Espanha, Reino Unido e EUA, exatamente o que haviam previsto Stephen Cecchetti e seus colegas no BIS (Banco de Compensações Internacionais), em estudo divulgado na semana passada. Foram esses os países que tiveram os maiores booms de crédito e bolhas de ativos. Foi neles que os gastos do setor privado sofreram mais restrições após a redução do endividamento.
Os saltos nos deficit fiscais são um reflexo da reacomodação conduzida pelos setores privados em crise. Nos EUA, o balanço financeiro do setor privado (a disparidade entre renda e gastos) se alterou de menos 2,1% do PIB no quarto trimestre de 2007 a mais 6,7% no quarto trimestre de 2009, um movimento da ordem de 8,8% do PIB. Essa virada imensa aconteceu a despeito dos esforços do Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA) para sustentar os empréstimos e gastos. Viradas assim aconteceram nos demais países atingidos pela crise.
Se esses governos tivessem decidido equilibrar seus Orçamentos, como muitos conservadores exigem, dois possíveis desfechos seriam possíveis: o mais plausível seria o de que viveríamos agora uma segunda Grande Depressão; o mais fantasioso seria o de que, a despeito de vasta alta na tributação ou imensos cortes de gastos, o setor privado teria continuado a captar e gastar dinheiro como se não tivesse havido uma crise.

Acreditar em magia
Em outras palavras, um imenso aperto fiscal resultaria na verdade em expansão da economia. Acreditar nisso é como acreditar em magia. A forte elevação nos deficit fiscais foi uma resposta apropriada. Mas o professor Ferguson está certo: todos sabem que esses deficit não podem ser mantidos por prazo indefinido.
Como apontaram Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff em estudo recente, quando a relação entre a dívida pública e o PIB excede os 90%, o crescimento médio cai em 1% ao ano. Isso pode ser dispendioso. Além disso, existe o risco de que, em dado momento, haja uma perda de confiança e disparada nas taxas de juros.
A dificuldade, porém, é que, como o McKinsey Global Institute também apontou em relatório recente, "os episódios históricos de redução do endividamento foram dolorosos, durando em média de seis a sete anos e reduzindo em 25% a relação entre dívida e PIB".
A única maneira de acelerar o processo seria por meio de falências em massa ou inflação. Caso essas soluções sejam descartadas, o que existiria para sustentar a demanda? Se a política fiscal também for excluída, a única exceção seria a demanda externa. Mas quem teria chances de compensar a contração da demanda nos EUA e nas demais economias seriamente atingidas? A resposta, infelizmente, é ninguém.
No entanto, como apontou o estudo do BIS, as perspectivas fiscais de longo prazo, ditadas em larga medida pelo envelhecimento da população, são precárias. Projetando com base em pontos de partida bastante desfavoráveis, os autores do estudo do BIS argumentam que a relação entre dívida pública e PIB pode chegar a 250% na Itália, a 300% na Alemanha, a 400% na França, a 450% nos EUA, a 500% no Reino Unido e a 600% no Japão, em 2050.
Caso o objetivo seja impedir que os papéis de dívida soberana desses países de alta renda sejam reduzidos ao status de "junk bonds", essas nações de fato precisam de planos confiáveis de reacomodação. Quanto a isso não existe desacordo. A melhor abordagem seria a redução acentuada no crescimento em longo prazo dos gastos com benefícios. Além disso, quando as economias se recuperarem, ação fiscal de curto prazo será igualmente necessária. As medidas teriam de incluir cortes de gastos e aumentos de impostos, para restaurar a receita perdida na crise.
E com isso chegamos ao grande dilema: e se a redução do endividamento privado e os deficit fiscais persistirem por anos, nos EUA e em outros países, como aconteceu no Japão? Nesse caso, os países de melhor classificação de crédito, entre os quais até mesmo os EUA, poderiam perder toda sua margem de manobra fiscal. Isso ainda não aconteceu no Japão. Pode não acontecer nos EUA, tampouco. Mas a possibilidade ainda assim existe.
Por isso, sim, os países de alta renda enfrentam fortes desafios fiscais. E, sim, os países atingidos pela crise começam de posições fiscais insustentáveis. Mas os EUA não são a Grécia. Além disso, um forte aperto fiscal realizado hoje constituiria um grave erro. Existe um forte risco -na minha opinião, uma certeza- de que isso devolveria o planeta à recessão. O setor privado precisa se curar. Isso, e não a reacomodação fiscal, é a prioridade.

Fonte: UOL