quarta-feira, 16 de junho de 2010

Os riscos de se antecipar o aperto fiscal

Excelente artigo do Wolf do FT sobre política fiscal. O argumento apresentado me parece convincente. O risco do aperto fiscal ser uma tiro no pé é muito grande, mas reconheço não ser uma decisão fácil. Ninguem nunca disse que política econômica é uma ciência exata...

A melhor política é adotar medidas que sustentem forte crescimento da demanda no curto prazo e contenha os enormes déficits no longo prazo

Mais uma vez ouvimos os brados da velha religião econômica: arrependa-se antes que seja tarde demais, o salário do pecado fiscal é a morte. Mas, será este o momento para medidas de austeridade? Eu duvido. No mínimo, temos de reconhecer os riscos: atraso na contenção de gastos cria um perigo de inflação e até mesmo de inadimplência; contenção prematura traz a ameaça de recessão e até de deflação, como argumentei na semana passada. Tendo por pouco sobrevivido ao maior colapso financeiro da história, precisamos entender que esses riscos adversos são graves.

Alguns argumentam que a economia está sempre em equilíbrio - que, nas palavras do dr. Pangloss, de Voltaire, tudo está ótimo no melhor dos mundos possíveis. Outros argumentam, com Andrew Mellon, secretário do Tesouro dos EUA no governo de Herbert Hoover, que após um grande boom de crédito, deveríamos "liquidar a mão de obra, as ações, os agricultores, ativos imobiliários imóveis (porque isso) purgará a podridão no sistema".

Não estou falando aos habitantes de quaisquer dessas cavernas. Falo aos que reconhecem que os erros no passado colocaram a economia mundial num buraco profundo e querem escapar o mais rapidamente possível. Mas pessoas sensatas acreditam que o maior perigo está agora em retardar o aperto fiscal. Sua convicção deve-se a quatro razões. Primeiro, temem que os mercados financeiros, tendo tomado como alvo a Grécia, Portugal e Espanha, logo apontarão suas armas para o Reino Unido, e até mesmo para os EUA; em segundo lugar, acreditam que déficits públicos "dissuadem" os investimentos privados necessários para uma recuperação; em terceiro lugar, alegam que déficits elevados produzem, necessariamente, inflação e, finalmente, acreditam que déficits fiscais não conseguem sustentar a demanda.

Vejamos onde estamos agora, usando a abordagem de equilíbrio financeiro do falecido Wynne Godley. Isso nos obriga a analisar como o setor privado está se comportando. Em 2010, segundo as previsões mais recentes do Fundo Monetário Internacional (FMI), o setor privado de cada país de alta renda incorrerá em excesso de receitas sobre despesas. Estima-se que esse diferencial seja de 7,8% do Produto Interno Bruto (PIB) reunido desses países, 12,6% no Japão, 9,7% no Reino Unido, 7,7% para os EUA e 6,8% para a zona do euro.

O que estamos vendo, em suma, é uma epidemia de frugalidade no setor privado - exatamente como receitaram muitos médicos econômicos. No entanto, essa contenção implica superávits em conta corrente ou déficits fiscais. Desses países, apenas a Alemanha e o Japão têm superávits em conta corrente. O restante são importadores de capital. Esses países incorrerão necessariamente em déficits fiscais maiores do que seus superávits privados. Temos, como notam os histéricos, uma onda fiscal vermelha.

O que veio primeiro - contenção do setor privado ou déficits fiscais? A resposta é: a primeira. No caso dos EUA, a enorme inflexão na balança do setor privado entre o quarto trimestre de 2007 e o segundo trimestre de 2009 - de um déficit de 2,2% do PIB para um superávit de 6,6% -, coincidiu com a crise financeira. O fato de a demanda agregada e as taxas de juro de longo prazo terem caído ao mesmo tempo mostra que o colapso dos gastos privados "atraíram" os déficits fiscais. O comportamento privado desregrado produziu o comportamento público desregrado.

Em sua coluna recente no FT, Jeffrey Sachs, da Universidade Colúmbia, afirmou que o estímulo fiscal foi desnecessário: medidas de política monetária teriam sidos suficientes. Eu discordo. A despeito de uma política monetária mais agressiva do que nunca, setores privados passaram a acumular enormes superávits. A política monetária estava enxugando gelo. Compensações fiscais, predominantemente estabilizadores orçamentários embutidos, e não o estímulo discricionário - ajudaram a sustentar a demanda durante a crise. Mas foram insuficientes, mesmo com apoio monetário, para evitar recessões profundas. É difícil de aceitar o argumento de que o estímulo foi desnecessário. É mais fácil crer que foi pequeno demais, embora também mal focado.

Então, com que rapidez deveriam os déficits ser eliminados? Precisamos reconhecer o perigo nesse ponto: cortar gastos públicos não implicará automaticamente em aumento dos gastos privados. A tentativa de redução do déficit estrutural poderia levar, isto sim, a um crescimento dos déficits fiscais cíclicos, o que equivaleria a correr sem sair do lugar, ou a uma redução dos superávits privados somente devido ao fato de a renda cair ainda mais rápido do que os gastos.

Enquanto a produção permanecer deprimida, é extremamente improvável que o apoio fiscal será inflacionário. O apoio fiscal também não "expulsará" o setor privado - é mais provável que o "atraia". A grande questão é, então, se os déficits podem ser financiados. Minha resposta é: sim. Lembre-se que enquanto o setor privado registrar superávits financeiros, precisará comprar dívida do setor público, a menos que o mundo desenvolvido como um todo esteja prestes a registrar enormes superávits externos.

De fato, o setor privado pode escolher entre um leque de governos. Mas é improvável que abandone os EUA. O setor privado não mostrou sinal de fazê-lo, até agora. O problema, para os europeus periféricos, é que eles têm pouca chance de um retorno de curto prazo ao crescimento. Os mercados não confiam na sustentabilidade política de economias em autoflagelação. O preocupante não são tanto os déficits fiscais, mas a incapacidade de sair deles.

A melhor política é implementar medidas que sustentem forte crescimento da demanda no curto prazo e, ao mesmo tempo conter os enormes déficits no longo prazo. Trata-se de andar e mascar chiclete ao mesmo tempo. Por que seria isso tão difícil?

Entretanto, agora seria um momento prejudicial para determinar austeridade fiscal à economia europeia e, assim, impor desfechos do tipo "empobrecer meu vizinho" aos infelizes EUA. Como Fred Bergsten, do Peterson Institute for International Economics, em Washington, advertiu, no FT, na semana passada, esse tipo de política pode ser muito perigoso. Assim, longe de ser estabilizadora, uma contenção fiscal prematura pode desestabilizar a economia mundial. Nesse caso, a decisão de transformar a zona do euro numa enorme Alemanha seria vista como um ato de guerra mercantilista contra os EUA. Por quanto tempo os americanos tolerariam a hipocrisia de países superavitários que culpam os tomadores de empréstimos pelos déficits que seus próprios superávits tornam inevitáveis? Não muito tempo, esse seria meu palpite, pelo menos agora que o governo dos EUA tornou-se o tomador de empréstimos de última instância do mundo.

Sim, compreendo que enormes déficits fiscais deixam as pessoas nervosas. Entendo, também, o desejo de tornar a solvência crível. Mas obedecer cegamente regras fiscais, ignorando o que está acontecendo no setor privado ou nas contas externas, é uma receita para desapontamento e conflitos políticos. Estabilização fiscal que dê sustentação ao crescimento é bem-vinda. Estabilização fiscal prematura que prejudique o crescimento é mais uma loucura

Fonte: Valor