quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Flexibilização quantitativa

Bom artigo do Martin Wolf sobre a "flexibilização quantitativa"do FED, no Valor desta quarta feira, que também publica excelente entrevista com o Eichengreen sobre o mesmo tópico, reunião do G20, etc.


O céu está desabando, gritam os histéricos: o Federal Reserve (Fed, banco central dos EUA) está derramando dólares em tais quantidades que, em breve, a moeda não terá valor. Nada poderia estar mais distante da verdade. Como no Japão, é muito mais provável que a política denominada "flexibilização quantitativa" se revele ineficaz mais do que letal. É uma mangueira com vazamento, não um dilúvio monetário de Noé.

Enfim, o que é que o Fed está fazendo? E por que está fazendo? Por que é que as críticas são ridículas? O que deveria o Fed estar fazendo, em vez disso?

A resposta à primeira indagação é clara. Como o Fed declarou em 3 de novembro, "para estimular um forte ritmo de recuperação econômica e para ajudar a assegurar que a inflação permaneça, ao longo do tempo, em níveis compatíveis com sua missão, o Federal Open Market Committee (Fomc) decidiu hoje ampliar seus estoques de títulos. O Fomc vai manter sua atual política de reinvestimento dos pagamentos do principal de seu estoque de títulos. Além disso, a comissão pretende adquirir mais US$ 600 bilhões em títulos de longo prazo do Tesouro até ao fim do segundo trimestre de 2011, a um ritmo de cerca de US$ 75 bilhões por mês".

Ben Bernanke, o chairman do Fed, explicou o argumento em discurso no mês passado. Ele ressaltou que o desemprego nos EUA está muito acima de qualquer estimativa razoável de equilíbrio. Além disso, as perspectivas de crescimento econômico tornam improvável que isso mude no decorrer de 2011. Isso é suficientemente ruim, mas o pior é que a inflação caiu para perto de 1%, apesar da expansão do balanço patrimonial do Fed, sobre a qual tantas lágrimas foram derramadas. As expectativas de inflação estão bem ancoradas, acrescentou ele, mas isso poderá mudar, depois de instalada uma deflação. Tendo em vista o desaquecimento da economia, isso pode não estar muito distante.

O Fed, acrescentou seu presidente, tem dupla missão: estimular o desemprego mínimo e a estabilidade de preços. Cruzar os braços seria incompatível com essa obrigação. A única questão é o que deve ser feito. A resposta é a proposta de compra de obrigações do Tesouro. Isso simplesmente estende as operações clássicas do mercado aberto para cima na curva de juros. Isso também só expandiria o balanço patrimonial do Fed em cerca de 25%, ou cerca de 4% do Produto Interno Bruto (PIB). Estão os EUA realmente na mesma estrada que a República de Weimar? Numa palavra, não.

Não é de surpreender que Wolfgang Schäuble, ministro das Finanças da Alemanha, pense diferente. Ele descreve o modelo de crescimento americano como envolvido em "crise profunda", acrescentando que "não está certo que os americanos acusem a China de manipular as taxas de câmbio e então façam a taxa de câmbio do dólar cair, ao abrir as comportas". Presumivelmente, ele acredita que, num mundo ideal, os EUA seriam forçados, em vez disso, a seguir a rota deflacionária imposta à Grécia e à Irlanda. Isso não vai acontecer. Nem deveria.

Essencialmente, as críticas ao Fed se resumem a dois pontos: suas políticas estão conduzindo a uma hiperinflação e elas são do tipo "empobrecer meu vizinho" - em suas consequências, se não em sua intenção.

A primeira dessas críticas não é apenas errada, mas estranha. A essência do sistema monetário contemporâneo é a criação de dinheiro, do nada, mediante a concessão de empréstimos, muitas vezes tolas, por parte dos bancos privados. Por que é que tal privatização de uma função pública é acertada e apropriada, mas ações do banco central para atender premente necessidade pública seria um caminho para a catástrofe? Quando os bancos deixam de conceder empréstimos e a base monetária ampla mal cresce, isso é exatamente o que o BC deveria estar fazendo.

A reação histérica então acrescenta ser impossível diminuir o balanço patrimonial do Fed com rapidez suficiente para impedir uma expansão monetária excessiva. Isso também não faz sentido. Se a economia decolasse, nada seria mais fácil. De fato, o Fed explicou exatamente o que faria, em seu relatório de política monetária apresentado ao Congresso em julho passado. Se o pior fosse levado ao extremo, o Fed poderia apenas aumentar as exigências de reservas. Uma vez que muitos dos seus críticos acreditam em 100% de reservas bancárias, por que se opõem a uma mudança nesse sentido?

Agora tratemos do argumento segundo o qual o Fed está deliberadamente debilitando o dólar. Qualquer pessoa medianamente consciente sabe que a missão do Fed não tem a ver com o valor externo do dólar. Os governos que empilharam um montante extra de US$ 6,8 trilhões em reservas cambiais desde janeiro de 2000, grande parte em dólares, são adultos responsáveis. Ninguém pediu à China que adicionasse o enorme montante de US$ 2,4 trilhões às reservas.

Mais fundamentalmente, são as forças de mercado, e não a política monetária, que estão forçando o reequilíbrio mundial, à medida que o setor privado tenta colocar seu dinheiro onde vê oportunidades. As políticas monetárias do Fed simplesmente dão um empurrãozinho. Em vez de todas as fúteis lamúrias, o necessário era uma apreciação coordenada das moedas das economias emergentes. A culpa aqui não é dos EUA. Simpatizo com um Brasil ou uma África do Sul, mas não com a China.

O céu não está desabando. Mas isso não significa que as políticas do Fed sejam as melhores possíveis. É provável que qualquer impacto sobre os rendimentos dos títulos de médio prazo produzam um efeito econômico pequeno. Seria muito melhor se o Fed pudesse deslocar para cima as expectativas de inflação, ao declarar explicitamente seu comprometimento em compensar um período prolongado de inflação abaixo da meta com outro de inflação acima da meta.

Pode ser razoável defender uma reconsideração do sistema monetário, como fez Robert Zoellick, presidente do Banco Mundial. Mas será que alguém espera que os políticos digam que embora lamentem essa depressão, precisam, primeiro, acalmar o mais especulativo entre os mercados de commodities do mundo? Aqueles a quem os deuses querem destruir, primeiro fazem enlouquecer.

Fonte: Valor