sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Frei Betto


Ótima entrevista/perfil da Maria Inês Nassif, com o Frei Betto




O dia 21 de janeiro amanheceu uma sexta-feira nublada. Foi um daqueles em que o céu caiu na cabeça dos paulistanos, no verão tardio de 2010 que só começou a acontecer em 2011. Entre dois temporais, o da manhã e o da tarde, Frei Betto e a repórter foram almoçar na Feijoada da Lana. Nos dois dias que separaram o convite do jornal para este "À Mesa com o Valor" de sua resposta, o irmão dominicano, escritor e jornalista Carlos Alberto Libânio Christo escolheu a dedo o restaurante. O estabelecimento serve a mais brasileira de todas as comidas, a feijoada, todos os dias. Lana Nowikow, a dona da feijoada, é uma jornalista, filha de imigrantes russos, que serve o seu famoso prato, antes acessível apenas aos amigos, num restaurante que forma filas imensas no fim de semana. Foi a última mulher de Sérgio de Souza, jornalista com quem Frei Betto trabalhou na revista "Realidade", nos anos 1960, e de cuja amizade desfrutou até o fim. Sérgio de Souza morreu em 2008. Lana continua amiga.

"O senhor ainda é gourmet?", pergunto, enquanto nos servimos do caldo de feijão, ao qual adicionamos generosas porções de cebola e cebolinha picadas, além da indispensável pimenta. Era a entrada. "Sou 'gourmãe'", responde o dominicano, que, embora em sua profícua obra de escritor, que totaliza 51 livros, ostente 2 livros de culinária, não admite rivalizar com os dons da mãe, Maria Stela Libânio Christo, a papisa da comida mineira que escreveu "Fogão à Lenha", o livro que todo aficionado em culinária e nas tradições daquele Estado já leu, com prazer. Foi cozinheiro de cela, no período em que esteve preso por ligações com a ALN de Carlos Marighella (os dominicanos deram apoio operacional ao grupo), mas era comida para 40 presos, com os ingredientes de que dispunha. Era difícil cozinhar com arte, conta. Mas continua gostando de cozinhar, revela, durante o almoço.

Nas festas de fim de ano, costuma fazer cuscuz marroquino, uma de suas especialidades. No último, para a imensa família reunida: mãe, 7 irmãos, 10 sobrinhos e 30 sobrinhos-netos, dos quais 14 crianças pequenas. "Cuidado, senão você vai acabar pisando em algum bebê", brincou o irmão, enquanto Frei Betto desempenhava a função de cozinheiro do dia. A mãe tem hoje 92 anos, pouco cozinha, embora ainda anote umas receitas.

Frei Betto foi preso, em 1969, quando estava abrigado num seminário dominicano na cidade gaúcha de São Leopoldo, o Cristo Rei. Foi para lá em maio. Já sabia que estava sob a mira da polícia. Em novembro iria para a Alemanha cursar teologia. Tinha que aguentar até lá. Antes de embarcar, todavia, recebeu de Marighella a incumbência de passar foragidos pela fronteira. Quando a polícia estava atrás de Frei Betto, dois jornalistas tentaram contato com o religioso para avisá-lo de que ele era a bola da vez. Encontraram a senhora que seria o contato deles numa procissão. Ela cantava um hino religioso e, no mesmo tom da música, deu o recado: "O padre que vocês estão procurando já caiu". Chegaram tarde.

Apesar da opção religiosa de Frei Betto, seu pai cultivava um anticlericalismo visceral, daqueles que define que padre nenhum entra na sua casa. Diferentemente do filho, era conservador. "Ele era um juiz de extrema-direita, americanófilo e anticlerical", conta o frade. Depois que o filho foi preso, passou a ver a política com outros olhos. "Ele foi mudando a cabeça e terminou a vida, em 1992, apoiando a Teologia da Libertação", diz Frei Betto. Aproximou-se da religião porque mudou de posição política. "Uma das únicas vezes que saiu do Brasil foi para conhecer Fidel Castro."

Tornar-se dominicano, todavia, não foi um ato de rebeldia. A mãe, dona Stela, não apenas era católica, mas militava na Ação Católica, o movimento que originou a esquerda católica. Carlos Alberto militava na Juventude Estudantil Católica (JEC) e depois, estudante de jornalismo, na Juventude Universitária Católica (JUC), dois movimentos nos quais os dominicanos eram ativos. E, daí, aproveita para deixar claro: nunca foi padre. Apenas é irmão. Pode celebrar missa e matrimônio apenas por delegação do bispo, mas não pode ministrar outros sacramentos, como confissão, batismo ou crisma. Essa foi uma opção. "Acho que aí tem um pouco da influência do anticlericalismo do meu pai, mas eu não tenho jeito de lidar com uma paróquia. Minha vocação é outra. A Ordem dos Dominicanos é oficialmente conhecida como a Ordem dos Pregadores. Hoje seria a ordem dos comunicadores, da comunicação."

É curioso conversar com Frei Betto. Entre um e outro gole de limonada suíça, fala com a mesma desenvoltura de marxismo e da experiência mística vivida com a leitura das obras de Santa Teresa de Ávila, que o salvou de uma crise de fé, ainda no noviciado. O marxismo é, para ele, uma ferramenta, um método de análise importante. "Sempre me interessei muito pelo marxismo. Desde que iniciei minha militância no movimento estudantil, no início dos anos 60, em Belo Horizonte, atuei muito em aliança com o PCB contra os setores conservadores." A ligação entre fé e marxismo o aproximou da revolução sandinista, na Nicarágua, no fim dos anos 70, construída por uma aliança entre marxistas e católicos. Foi no aniversário do primeiro ano da revolução, em julho de 1980, que conheceu Fidel Castro. Foi a primeira de longas conversas - "os irmãos Castro jamais conseguem receber alguém por uma ou duas horas somente", diz Frei Betto. "Parece coisa de mineiro", observo. O religioso ri. Aceita a semelhança. "É, parece."

Nessa conversa inicial, que durou das 14 horas às 6 do dia seguinte, Frei Betto fez duas perguntas ao líder cubano. "Eu perguntei por que o governo e o Partido Comunista Cubano eram confessionais. Ele levou o maior susto. Disse: 'Somos oficialmente ateus'. E eu respondi: 'Exatamente por isso são confessionais. Negar a religião é confessionalidade. Não existe nenhuma prova científica da existência de Deus, mas não existe também da não existência'. Ele disse que eu tinha razão, que não havia pensado nisso. Anos depois, eles mudaram a Constituição e o Estado e o partido passaram a se declarar laicos", conta. A segunda observação foi sobre as relações do governo com a Igreja Católica, e Fidel reconheceu que elas não eram boas.

Em 1981, Frei Betto foi a Cuba como mediador de entendimentos entre o governo cubano e a igreja. Acredita que foi um trabalho bem-sucedido - a ponto de a igreja ter monitorado o processo de soltura dos presos políticos. Em 1975, o dominicano lançou o livro "Fidel e a Religião". Depois de Cuba, foi convidado também para mediar as relações entre igreja e Estado em países do Leste Europeu: Polônia, Rússia e Tcheco-Eslováquia. "Já era muito tarde, o socialismo já estava desmoronando", lamenta.

Vamos ao bufê. A feijoada está espalhada por panelas de barro com feijão e outras com carnes variadas. A laranja é cortada como em Minas: a casca é tirada de forma a machucar a fruta e retirar a película branca que a separa da polpa. Depois, a polpa é cortada em pedaços que obedecem ao tamanho do gomo. Frei Betto arruma a feijoada no prato com capricho: em separado, o feijão, duas grandes costelas de porco (das quais se tira pouca carne, mas a mais saborosa da feijoada), paio, a farofa e o montinho de couve. Vê, com pesar, o seu prato ser confiscado pelo fotógrafo para o registro que o leitor encontra nesta página. Para um gourmet, não deve ter sido agradável ver o prato esfriar sob flashes numa mesa ao lado do bufê. Ainda bem que é jornalista. Manteve a paciência.

De volta à varanda, onde nos acomodamos, o barulho intenso dos ônibus que passam na rua Aspicuelta agora se mistura com a forte chuva. Falamos mais alto, assim como as demais mesas ao nosso lado. Frei Betto conclui seu raciocínio sobre o cruzamento entre Deus e Marx. "Seria complicado conciliar as duas coisas se eu considerasse o marxismo uma religião, como muitos marxistas consideram. Mas eu considero como um método de análise. Assim como São Tomás de Aquino pôde embasar a sua teoria em Aristóteles, que era pagão, a Teologia da Libertação também pode articular com categorias marxistas."

Fugimos da chuva. Abrigados lá dentro, Frei Betto, eu, o fotógrafo e o motorista, pedimos a sobremesa. Frei Betto não conseguiu o frugal abacaxi que pediu. "Está muito azedo", desencorajou a garçonete. Um delicioso pudim de claras foi parar no meio da mesa, por culpa minha - um pedaço imenso, que precisou da ajuda dos demais para chegar ao fim.

Só então eu me sinto à vontade para matar um pouco da curiosidade que, acho, toda pessoa que não tem religião cultiva em relação a Frei Betto, o dominicano que respira política e sempre ganhou sua vida trabalhando em jornais e revistas, escrevendo livros e dando palestras: "O senhor não sentiu falta de uma vida 'civil'?" Ele ri. Não devo ser a primeira pessoa a ter perguntado isso, porque a resposta está na ponta da língua: "Nunca tive saudades dos filhos que nunca tive. A religião me dá muita liberdade e eu gosto muito disso". E, entre risos, observa: "Eu conheço tão intimamente a vida conjugal dos outros que não sinto inveja". Tem vários amigos que deixaram a vida religiosa para casar e se arrependeram. Um deles, que não teve filhos, foi aceito na ordem novamente quando se separou, 20 anos depois.

A conversa acompanha o ritmo da chuva. Frei Betto conta sobre os tempos da "Realidade", a revista que foi o padrão de jornalismo dos anos 60, e da "Folha da Tarde", jornal do grupo "Folha de S. Paulo". Chegou a chefe de reportagem. Ele, o diretor da "Folha da Tarde", Jorge Miranda, e o jornalista Flávio Tavares eram inseparáveis, no jornalismo e na militância política. A revista "Veja" daquela época volta para a história quando ele repete um comentário que escreveu em um dos seus livros biográficos, o "Batismo de Sangue": todo "ponto" [encontro] que ia cobrir, a senha para encontrar a pessoa era a "Veja" debaixo do braço. Assim era com quase todo militante político. Em 1968, quando mais de mil estudantes foram fazer um encontro da UNE na pequena Ibiúna, calcula-se a quantidade de "Vejas" que foram necessárias para cobrir todos os pontos das pessoas que foram para lá de todo o Brasil.

Frei Betto nunca foi do PT, ao contrário do que muitos pensam; continua amigo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, embora tenha entrado no seu primeiro governo e não poupado críticas quando saiu, mas conta que tem um pacto de não falar na amizade. Ela está fora disso. E, apesar de todas as críticas - basicamente, a de que o governo substituiu o Fome Zero, que previa portas de saída do programa, pelo Bolsa Família, que é um programa compensatório de renda -, julga que o presidente Lula fez o melhor governo do período republicano. Falta ainda. Principalmente educação - "falta um Paulo Freire, falta um Anísio Teixeira". A questão ambiental também ficou para trás.

Falta também superar os anos de ditadura, afirma Frei Betto. Foram 21 anos que travaram a criação artística. A literatura não produz mais obras de arte. "Não houve uma revolução educacional depois da ditadura. Faltou reforma agrária, que poderia ter segurado população no campo e ter evitado a ocupação desordenada das cidades, responsável, por exemplo, pela catástrofe ocorrida na região serrana do Rio, que resultou em cerca de mil mortos."
Acaba o café e a chuva passa. De repente, Frei Betto se apressa. Esqueceu o guarda-chuva no carro. É a chance que tem de chegar seco ao convento dominicano, em Perdizes, onde mora. Despedimo-nos. Eu, lamentando a evidência de que, na hora de escrever, muita história teria que ficar de fora das páginas do jornal. A vida intensa de Frei Betto, política e religiosa, não cabe em um tabloide. E certamente não se esgota nos livros biográficos que colecionou ao longo da vida.

Fonte: Valor