terça-feira, 26 de novembro de 2013

Entrevista com a Anita Kon


Ótima entrevista com a minha colega da Católica de SP. Vale a leitura.

Valor: Os serviços hoje estariam puxando o crescimento das economias em todo o mundo, substituindo um papel que antes cabia à indústria? O mesmo ocorre no Brasil?

Anita Kon: O que estou escrevendo agora é que na atualidade os serviços puxam a economia. A ideia tradicional é que primeiro a indústria puxa a economia, e aí o emprego vai na onda da indústria. Mas com essa história de emprego criativo, com informática entrando em todas as áreas da economia, tem indústria que, se não fosse essa parte de serviços, ela não funcionaria. A minha ideia é que os serviços na atualidade puxam bastante a economia porque eles têm funções que fazem todos os setores funcionarem. Sem esses serviços, estes setores aliás nem funcionariam.

Valor: Nem todos os economistas concordam com isso...

Anita: É, alguns economistas acham que é a indústria que puxa o crescimento da economia. Isso vem mudando gradativamente e não é só no Brasil. Na década de 1990, quando a tecnologia nessas áreas de informática e comunicação começou a ficar mais avançada, o papel dos serviços veio aumentando nos países mais desenvolvidos, e depois isso se difundiu para os países menos desenvolvidos. Acho que, na atualidade, o papel de serviços ou se iguala ou é até mais importante que o da indústria. Há algumas indústrias em que a maior parte do emprego é serviços, e você não sabe o que é valor adicionado pela indústria ou pelo serviço que está dentro dele. Por exemplo, tem indústria de sapatos na qual o modelo, o corte e o tingimento são feitos com softwares automatizados. A pessoa que desenha o sapato está trabalhando em serviços. Depois, ela põe isso no computador e a máquina faz tudo que ela desenhou. Então, até que ponto o valor gerado na fábrica de sapatos é da indústria ou dos serviços?

Valor: Como é caracterizada uma economia que cresce principalmente baseada no emprego gerado pelo setor de serviços?

Anita: Tradicionalmente, em todos os países do mundo, não só no Brasil, os empregos nos serviços crescem mais rapidamente do que os da indústria, mas a questão é que tipo de serviços? E também entender que a indústria tem um limite. O setor de serviços aceita tudo, desde o pessoal qualificado até aquele que vende bala na esquina. Quando se fala que o emprego dos serviços é muito maior do que na indústria, em todas as economias desenvolvidas e menos desenvolvidas, isso é verdade. Ele puxa o emprego, mas de qual qualidade? O que tem por dentro disso? Entre 60% e 70% do emprego está em serviços no Brasil. Mas o que é formal é uma parte pequena, metade disso. Grande parte é de emprego informal. Então, só dizer que o emprego nos serviços é muito mais representativo do que na indústria não significa nada. Precisa ser analisada a qualidade desse emprego.

Valor: Há ainda muitas críticas justamente sobre a qualidade do emprego no setor de serviços, a alta informalidade...

Anita: É muito heterogêneo o setor de serviços. Há emprego de alta qualificação nesta parte de informática, em assessorias às empresas, em que às vezes a remuneração é maior do que na indústria. Tem autônomo que ganha muito mais neste tipo de serviço do que aquele que faz a mesma coisa dentro de uma indústria. Há pessoas que trabalhavam em indústrias, foram despedidas, e passaram a prestar serviços para a mesma indústria de forma informal. Algumas indústrias diminuem custos dessa forma. Mas também há os serviços de empregada doméstica que não é registrada em carteira, e pessoas que montam barraca para vender abacaxi na rua. Então, existem várias formas e qualidade de empregos dentro do setor de serviços. Você pode se virar para ganhar um dinheiro como informal nos serviços. Na indústria é mais difícil porque precisa de mais capital. Mas tem muita informalidade na indústria também porque pequenas empresas não querem se tornar formais por conta dos altos impostos. E, apesar de a informalidade estar reduzindo, ela vem diminuindo muito lentamente.

Valor: Na sua avaliação, então não é na indústria que está o emprego de maior qualidade?

Anita: Em termos de média [salarial], a indústria é melhor. Mas não se pode generalizar porque na média parece que serviços é uma coisa única e indústria é uma coisa única e não são. Dentro deles, há muita diversidade.
Valor: Há muitos pesquisadores que falam que o local de inovação principal de uma economia ainda é a indústria...

Anita: Não é verdade que a inovação na indústria é maior. Toda essa parte de serviços que ajudam outras empresas está sendo mais intensa em inovação do que a indústria. Na indústria, compramos tecnologia de fora, não temos um grande volume de pesquisas. Quando falam de inovação, as pessoas esquecem da inovação em serviços, isso não se estuda muito. E a inovação em serviços é intangível,você não a percebe.

Valor: Na a avaliação da Sra. acabou a preponderância da indústria como indutora da economia brasileira?

Anita: Não, eu não vou dizer que acabou, mas o setor de serviços está se equiparando à importância da indústria. As pessoas precisam da indústria manufatureira. Ela é importante. Mas, muitas vezes, certas indústrias só conseguem fazer isso a custos do uso de um software. Não é que a indústria perdeu sua qualidade de impulsionar a economia. Não é que são os serviços os grandes estimuladores, mas eles estão ganhando um espaço que antes era só da indústria e muitos analistas ainda não percebem isso.

Valor: O setor de serviços, na sua avaliação, é um tanto ignorado pelos pesquisadores porque são difíceis as bases estatísticas sobre isso?

Anita: No exterior, as estatísticas sobre serviços já estão bem desenvolvidas. No Brasil, existe muita dificuldade de conseguir bons dados sobre a área de serviços. Apenas há bem pouco tempo o IBGE vem desenvolvendo uma Pesquisa Anual de Serviços, mas ainda as informações não são tão amplas.

Valor: Essa mudança, com aumento da importância do setor de serviços, guarda muita relação com as alterações na forma de organização da grande empresa mundial?

Anita: Sim. A teoria evolucionária/neoschumpeteriana fala que a base da competição hoje em dia é a informação porque para competir melhor no mercado, para se desenvolver, a empresa tem que estar baseada na informação e em um gerenciamento inteligente e criativo. E isso tudo é serviços. Estamos num período diferente. Nos anos 1990, as empresas precisavam de muito capital fixo. Na atualidade, as grandes empresas estão dividindo suas atividades, estão se tornando menores fisicamente. Há determinados produtos que cada parte é feita num país diferente. Em termos de recursos investidos, as empresas continuam grandes, mas hoje se exige muito mais capital em áreas como Pesquisa & Desenvolvimento (P&D) [que é serviços] do que em instalação física.

Valor: E é possível inclusive o Brasil fazer exportação de serviços. Já somos grandes nisso?

Anita: Tem analista que fala que serviços é "non tradable". Mas isso não é verdade. Tem pessoas que ainda têm uma visão que se tinha nas décadas de 1970 e 1980. Mas estamos muito rapidamente em outra época. Há assessorias de construção civil, por exemplo, que são exportadas para países árabes, para Ásia e África. A parte de seguros também. Mas a participação do Brasil na exportação de serviços no mundo é muito pequena ainda. E tudo isso ajudaria o balanço de pagamentos, fomentaria a demanda interna, criaria empregos e elevaria a renda.

Valor: Quais os problemas que podem existir numa economia fortemente vinculada ao serviços?

Anita: Problema não tem. Existem algumas economias que são só de serviços. Alguns escritórios de desenvolvimento de software se estabeleceram em ilhas do Caribe que são baseadas só em serviços. As pessoas que estão lá têm alto nível e ganham bem porque desenvolvem um serviço de alta qualificação. A Espanha, por exemplo, tinha algum tempo atrás as maiores entradas de dólares em razão do turismo. Então, não tem um problema. Isso depende do tipo de serviços e do país. Um país muito grande como o Brasil ou os Estados Unidos precisam ter um parque industrial próprio, além dos serviços, porque não há divisas para importar toda manufatura que o mercado interno precisa. Nesta crise [a de 2008], a gente está importando muita coisa e isso tem reflexos sobre o déficit enorme da balança comercial.

Valor: Os industriais costumam argumentar que o setor industrial vive uma crise pela desindustrialização relativa...

Anita: Desindustrialização parece uma expressão pejorativa, negativa, parece que você está destruindo uma coisa. É negativo a indústria não se desenvolver na medida do necessário para produzir para a população e para exportar por causa desses efeitos sobre o balanço de pagamentos. Mas eu não vejo como uma quebra do parque industrial. O parque industrial do Brasil existe ainda, só que ele está marcando passo. Parece que desindustrialização é você acabar com a indústria. Muitas pessoas interpretam dessa forma.

Valor: Marcando passo, por quais razões? É um problema da macroeconomia: juros altos e real valorizado?

Anita: A indústria está em crise, uma crise de falta de infraestrutura. Não é a macroeconomia. O governo está trabalhando em cima de uma macro estável e está conseguindo. Sobem um pouco os juros e o câmbio, mas ela [a macro] está estabilizada. Onde pega é na infraestrutura porque para distribuir os produtos é preciso boas estradas, bons trens, rios navegáveis, e bons portos para exportar.
Valor: A perda de importância da indústria não tem relação com o câmbio necessariamente?

Anita: Se a gente tivesse competitividade, conseguisse chegar lá fora com um preço bom, não era o câmbio que iria atrapalhar. Ele tem um papel importante. Com ele mais favorável [desvalorizado], a indústria tem mais possibilidade de exportar. Não digo que não tem influência, mas não é o ponto essencial. No momento, o ponto essencial é aumentar a produtividade, poder concorrer lá fora em preço não só por causa do câmbio, mas pela qualidade do produto.

Valor: Alguns economistas falam que o setor de serviços não proporciona os efeitos multiplicadores que a indústria de transformação proporciona numa economia...

Anita: Ele [serviços] só tem efeitos multiplicadores. O que é transporte? Serviços. O que é comunicação? Serviços. O que é informática? Serviços. Olha o efeito multiplicador da renda de tudo isso.

Valor: Mas o predomínio no Brasil não é de um serviço de alta qualidade e nem de emprego de alta qualificação em serviços.

Anita: É verdade. Mas tem uma parte no Brasil de serviços qualificados. Falta uma mentalidade. Algumas indústrias ainda não perceberam a importância dos serviços para a concorrência. As pessoas têm que perceber que uma das saídas para nós é investimento em serviços e em inovação em serviços pelos seus efeitos multiplicadores. O pessoal só fala de investimento na indústria. Há muitos efeitos multiplicadores ao se investir em serviços de saúde e em educação, por exemplo.

Valor: Há economistas que acreditam que o país está em pleno emprego, em grande medida puxado pelos serviços. O que Sra. acha?

Anita: O IBGE calcula, na verdade, a taxa de desocupação. Emprego, pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), possui aquele que trabalha com as regalias da carteira de trabalho. Isso é um emprego. E todo mundo um tempo atrás falava que o Brasil estava em pleno emprego. Coloquei a definição da OIT [em um artigo acadêmico] para mostrar o que é pleno emprego. Não estamos em pleno emprego porque isso não é só ocupar grande parte da população. Hoje, temos 90% da população ocupada (PEA). Mas pleno emprego é dar condições satisfatórias de remuneração, educação e saúde. Estamos em pleno emprego? Longe disso. O Dieese coloca os tais desalentados e então a taxa está em 10% e não em torno de 5% [como aponta a taxa de desocupação do IBGE]. Existe uma interpretação errada dos indicadores. O IBGE não está errado. O que está errado é a interpretação da pesquisa dele. O que a gente sabe é que o desemprego é muito maior do que isso [os 5%]. O Dieese calcula em 10%.

Valor: A Sra. acredita que deveria ser revista a forma de apuração dos institutos de pesquisa?

Anita: Não é isso. É como interpretam. Tanto Dieese quanto IBGE calculam essas taxas em algumas regiões metropolitanas. Toda a parte da zona rural - onde há mais emprego informal e salário mais baixo - não é calculada. Tem outra distorção aí, que é de uma amostra que é só das regiões metropolitanas. A análise que se faz é de que o Brasil é isso. Mas o Brasil não é isso. O Brasil tem uma série de diferenças. Não é porque estão mascarando. A pesquisa está ótima. A interpretação e a forma de colocar para o público pelo governo é assim porque tem outros interesses...

Valor: Em 2015, quem assumir a presidência da República deveria se preocupar com a situação da indústria no país?

Anita: Deveria, mas se vai conseguir eu não sei. Não é só a macroeconomia que vai resolver, mas uma política industrial efetiva, para resolver o campo micro. Mas na minha opinião o olhar não deve ser só para a indústria.

Valor: O governo desonerou nos últimos anos alguns setores industriais com esse olhar sobre a importância da indústria...

Anita: Mas não adianta fazer uma coisa para aumentar o consumo, se toda a infraestrutura não está preparada para atender esse aumento de consumo. O nosso povo tem um limite para consumir. Ele consome se endividando. Esses que compram liquidificador com IPI menor tem uma qualidade de vida melhor, mas se endividam muito e aumentam a inadimplência. Você tem que construir uma estabilidade nesta política, uma coisa sustentável. Na atualidade, estão só apagando o fogo.

Valor: A Sra. concorda com a avaliação de que para economia brasileira crescer mais precisa ter avanços da produtividade do capital e do trabalho?

Anita: A qualificação do trabalhador brasileiro é em média muito baixa em relação à população do país e em relação aos outros países. Para investir em modernização das empresas, trazer mais informática e comunicação, é preciso um pessoal que possa trabalhar com isso. Não é só importar uma máquina que aumenta a produtividade. Há algum tempo, importaram um aparelho de diagnóstico para um hospital e ele ficou mais de um ano parado porque não tinha alguém que soubesse operá-lo. Como é que a gente quer ir adiante desta forma?


Fonte: Valor